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04 fevereiro 2007

Desequilíbrio Social X Estado Democrático de Direito

Em matéria deste domingo, o colunista de O Globo, Elio Gaspari, trouxe a notícia sobre estudos de dois advogados da Universidade de São Paulo sobre a importância da atividade jurisdicional como regulara de diferenças sociais.

Os estudos combatem a falsa idéia de que o judiciário combate as desigualdades sociais através da proteção da parte denominada hipossuficiente, ainda que tal proteção esteja visível na legislação (p. ex.: Código de Defesa do Consumidor, CLT).

Não raro, os operadores do direito, se deparam com situações de evidente proteção e até desequilíbrio de forças em que a parte hipossuficiente acaba favorecida. Porém, em boa parcela destes casos a atuação do judiciário acaba por ferir o direito, concebido na legislação constitucional com inobservância de provas contrárias a parte hipossuficiente, ou evidente cerceio de defesa da parte dita privilegiada.

O estudo traz argumentos e números realistas, porém a análise de tal estudo deve ocorrer sem açodamentos, posto que ainda que necessário o equilíbrio de forças com a proteção do hipossuficiente, tal equilíbrio não pode – nunca – ser conquistado com o desgaste das regras constitucionais, sobretudo as clausulas pétreas.

Trata-se, pois, “de ministrar o remédio certo na dose certa”, uma vez que, sob o argumento de eliminar o reflexo da desigualdade social no judiciário não se pode distanciar ou desconstituir o Estado Democrático de Direito, onde este sendo, hoje, afastado em nome de uma atitude aparentemente digna, amanhã sob o mesmo foco, e em mãos espúrias, poderá ser afastado em nome de outra atitude evidentemente indigna.

Neste sentido, defender que o contrato possa ser relativizado, ainda que legal, sob o espeque de diminuir desigualdades, por certo encontra sério óbice que decorre da própria existência do Estado Democrático de Direito.

Vejamos parte da conclusão de Ivan César Ribeiro e Brisa Lopes de Mello Ferrão, no estudo intitulado “Os juizes brasileiros favorecem a parte mais fraca?”1:

“O favorecimento dos economicamente privilegiados não se dá através da intervenção direta, mas sim de uma neutralidade que ignora as maiores chances de defesa que o litigante organizacional naturalmente tem a seu favor.

Verifica-se ainda que a grande vantagem da parte mais forte é apenas levemente mitigada, com uma redução equivalente à apenas um terço de sua vantagem inicial, quando a legislação (e não o juiz) intervém em favor do hipossuficiente.”

(...)

“O contrato é relativizado apenas quando eivado de ilegalidade, não se identificando nenhuma voluntariedade do Judiciário no sentido de defender as partes hipossuficientes, além do estabelecido em lei. Mais do que isso, nas áreas que seriam mais sensíveis à existência de um viés intervencionista da justiça, a do crédito e juros, comercial e do inquilinato, vigora a livre contratação e a pouca interferência tanto do legislador quanto dos magistrados. Nessas áreas, quem corre o risco de ver ignorados os termos da contratação é a parte mais fraca, ou seja, o inquilino, o devedor e o pequeno empresário. Os riscos de afastamento do contrato estaria nas áreas mais reguladas, como por exemplo nas questões trabalhistas, de seguridade social e ambiental.”

Contrapondo-se ao respeitável e glorioso estudo, devemos observar lições já conhecidas, mas que, porém, não devem ser esquecidas, vejamos então o que afirmou Hélio Cavalcanti Barros2:

“Se as leis são injustas, mudem-se as leis. Caso sejam inconstitucionais que assim sejam declaradas. Não cabe ao juiz deixar de aplica-las de acordo com sua ideologia, consciência e critério, apoiado em uma suposta ‘justiça social’. Já ensinava Ennecerus que, ante a insubordinação do direito positivo ao direito ideal ou à justiça absoluta, deve caber ao legislador a tarefa de corrigir a injustiça através da derrogação da lei má, mas não ao juiz recusar-lhe aplicação em nome de uma justiça ideal.”

Tal estudo, traz a baila o chamado direito alternativo, em que os defensores de tal tese reclamam a maior participação do juiz na tarefa de distribuição da justiça, ou seja, o juiz poderá julgar conforme sua consciência, aplicando sua própria lei, o que, por certo geraria grave crise de insegurança jurídica.

Obviamente, a busca do equilíbrio e da paz social deve ser alcançado através da aplicação da própria lei, e não através de sua inobservância.

Assim, análises desatentas do estudo citado poderão gerar abstrusa conclusão sobre as formas de solução do descrédito que atravessa o judiciário, e sobre a necessidade de equilibrar forças entre partes desiguais.

Registre-se que as críticas aqui descritas não se dão – simplesmente – para discordar do estudo, ou discordar da necessidade do envolvimento mais marcante do judiciário na busca do equilíbrio social, porém se trata de adequar tais necessidades as realidades jurídicas existentes.

Vejamos que o estudo denominado “Robin Hood versus King John: como os juizes locais decidem casos no Brasil”3 atenua a dose de criticas em relação a atuação do judiciário:

“Os resultados da pesquisa enfatizam que a imparcialidade da justiça é essencial para o desenvolvimento econômico. A possibilidade de ser expropriado desencoraja o investimento externo (de fora do país ou, no teste do presente artigo, de fora do Estado). Os potenciais ganhos e o desenvolvimento decorrente da especialização na produção, do comércio inter-regiões e do comércio internacional não serão alcançados por essas localidades. Esta situação é o inverso do que se observou na Europa entre os séculos XI e XIV, quando a criação de instituições que asseguraram os direitos de propriedade e a manutenção dos contratos favoreceu o ressurgimento do comércio, ao permitir transações além do círculo de relações pessoais dos agentes econômicos.”

(...)

Entretanto, não é suficiente ter apenas os contratos que favorecem estes investidores sendo garantidos, mas é necessário assegurar a qualquer um que decida contratar que os acordos serão respeitados. Existem grandes obstáculos quando se trata de proteger os direitos do pequeno contratante e isso pode ser igualmente danoso ao desenvolvimento econômico. Ilustrativo dessa situação é a pesquisa que o Supremo Tribunal Federal conduziu no Rio de Janeiro em 2004, mostrando que 49,5% das ações em matéria de responsabilidade civil nos Juizados Especiais Cíveis foram ajuizadas contra apenas 16 companhias. Estas empresas foram condenadas a pagamentos totais equivalentes a 2,3 bilhões de dólares, e ainda persistem nas práticas que levaram às condenações. Neste contexto, uma pessoa que percebe que seus direitos não serão assegurados evitará contratar com uma parte mais poderosa, deprimindo o mercado de crédito, diminuindo o valor das marcas comerciais (pois a suposta garantia oferecida pelas marcas não teria credibilidade) e aumentando o tamanho do mercado informal. Atribuir os problemas do desenvolvimento à proteção da parte hipossuficiente nas relações comerciais equivaleria a dizer que no modelo de Milgrom et al (1990) o culpado pela retração dos mercados no início da idade média seria o servo, que não cumpriria adequadamente o seu contrato de servidão, e não o senhor feudal, que ao fazer sua própria lei, peso, moeda e Justiça desestimulava o comércio entre as diversas regiões da Europa.”

(...)

“Verificou-se também na introdução desta pesquisa que a aplicação das legislações de proteção ao hipossuficientes (consumidor, trabalhador e outros) porventura pode ser desvirtuada, sendo usada como manobra para proteger grupos locais que nada tem de hipossuficientes. Abundam entre os casos pesquisados a aplicação do Código de Defesa do Consumidor a grandes empresas regionais. A definição da aplicação das legislações especiais, com o recurso à súmula vinculante ou mesmo padronizações comuns de jurisprudência podem coibir tais práticas.”

Porém, vale alertar que análises desatentas poderão confundir o que, realmente, significa justiça, equidade, lei e direito, havendo as quatro palavras significados distintos.

Para Pontes de Miranda a diferença entre direito e lei é a seguinte:

“O princípio de que o juiz está sujeito à lei é, ainda na sua precisa posição constitucional, algo de guia de viagens, de itinerário, que muito serve, mas nem sempre basta (...). Se entendemos que a palavra lei substitui a que lá deverá estar, direito, já muda de figura. Porque direito é conceito sociológico, a que o juiz se subordina, pelo fato mesmo de ser instrumento da realização dele. E esse é o verdadeiro conteúdo do juramento do juiz, quando promete respeitar e assegurar a lei. Se o conteúdo fosse o de impor a letra legal, e só ela, aos fatos, a função judicial não corresponderia àquilo para que foi criada: apaziguar, realizar o direito subjetivo. Seria a perfeição em matéria de braço mecânico do legislador, braço sem cabeça, sem inteligência, sem discernimento. Mas anti-social e, como a lei e a jurisdição servem à sociedade, absurda. Além disso, violaria, eventualmente, todos os processos de adaptação da própria vida social, porque só atenderia a eles, fosse a moral, fosse a ciência, fosse a religião, se coincidissem com o papel escrito (...). Pouco importa, ou nada importa, que a letra seja clara, que a lei seja clara: a lei pode ser clara, e obscuro o direito que, diante dela, se deve aplicar. Porque a lei é roteiro, itinerário, guia (...). O direito, e não a lei como texto, é o que se teme seja ofendido.”4

Miguel Reale5 busca explicar a diferença entre justiça e equidade:

“Diante de certos casos, mister é que a justiça se ajuste à vida. Este ajustar-se à vida, como momento do dinamismo da justiça, é que se chama equidade, cujo conceito os romanos inseriram na noção de Direito, dizendo: jus est ars aequ et boni. É o princípio da igualdade ajustada à especificidade do caso que legitima as normas de eqüidade.

Na sua essência, a equidade é a justiça bem aplicada, ou seja, prudentemente aplicada ao caso. A eqüidade, no fundo, é, repetimos, o momento dinâmico da concreção da justiça em suas múltiplas formas. Daí, inspirando-se nessa definição romana do que jus est ars aequi et boni, ter um jurista italiano proposto a expressão ‘equobuono’ para mostrar a indissolubilidade dos dois aspectos essenciais à plena compreensão do Direito.”

(...)

“Há casos, portanto, em que a própria lei positiva confere ao juiz o direito de julgar por equidade, o qual, na prática, se impõe mais do que pretende o formalismo legal...”

Sendo assim, sempre que a lei recomendar, e, desde que não haja violação ao Estado Democrático de Direito, deve o juiz realizar aplicação do direito da maneira mais benéfica a parte hipossuficiente, gerando equilíbrio e justiça social, porém sem desestabilizar a segurança jurídica.

1 Fonte - Os juizes brasileiros favorecem a parte mais fraca?: http://repositories.cdlib.org/bple/alacde/26

2 Direito Administrativo, JB, 22.5.92, citado por Reis Friede, Aspectos Fundamentais das Medidas Liminares, Forense Universitária, p. 4.

3 Fonte – Robin Hood versus King John: como os juizes locais decidem casos no Brasil: http://getinternet.ipea.gov.br/ipeacaixa/premio2006/docs/trabpremiados/IpeaCaixa2006_Profissional_01lugar_tema01.pdf

4 Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, tomo VI, p. 290-291.

5 Lições Preliminares de Direito, Editora Saraiva, p. 123-124.